quarta-feira, janeiro 30, 2008

Os «fundamentalismos» da Europa

por Hélder Nunes (jornalista e director do Barlavento)

A ASAE está a multar as agências de viagens que enviem clientes para hotéis sem licenças. Não seria mais lógico que a ASAE fosse aos ditos hotéis, mandasse os clientes dar uma volta e fechasse as portas, até tudo estar devidamente licenciado? Sim, porque se a ASAE vai a uma cantina na hora de almoço, a manda encerrar e deixa crianças sem comer durante cinco horas, também pode mandar fechar um hotel.

Porque não actua a ASAE em conformidade? Porque é uma polícia feita à medida das tascas, das feiras do relógio e de umas tantas festas populares. O patamar superior, ao que parece, já não é para esta polícia.

Aliás, não temos conhecimento que tenham sido fechados hotéis sem licença, nem tão pouco que o camarão de alguma grande superfície tenha sido regado com lixívia.

Para que fique claro, não desejamos, de forma alguma, que haja desleixo ou incumprimento das normas legais. Num país como Portugal, onde a iliteracia está instituída, era muito mais importante começar a educar, praticar a prevenção e actuar sem repressão.

Há uma procura contínua da multa e dos processos, como simples regra contabilística dos números que contam para as estatísticas.

O que resta aos cidadãos a quem não lhes é dada margem de se adaptarem aos novos «fundamentalismos» europeus? Responder com regras que não violem as leis, dentro de esquemas marginais da normalidade, onde não possam ser acusados de ilegalidade.

Por exemplo: há alguma lei a proibir um cidadão de organizar na sua casa, diariamente, almoços com uns amigos? Casas de almoços à porta fechada. O dono da casa abre e fecha a porta aos seus amigos, convida-os a almoçarem e, no fim, à moda do Porto, divide a despesa por todos com a respectiva recompensa de ter sido ele o organizador.

Uma associação de amigos, sem fins lucrativos e sem apoios do Estado, resolve fazer a recolha entre eles dos medicamentos não utilizados e dentro do prazo de validade, e, depois, faz a sua redistribuição por outros amigos. Será que há uma lei que proíba alguém de dar a outrem o que quer que seja?

E podemos continuar nesta linha. Quem sabe se, num destes dias, não seria aconselhável voltarmos aos tempos remotos da troca de mercadorias. Há alguma lei que proíba de trocar um móvel por sacos de batatas?

Para que se compreenda toda esta complexa legislação, António Nunes, inspector da ASAE, na Assembleia da República, reconheceu que os pequenos produtores não têm legislação a defendê-los, logo, correm sérios riscos. As indústrias tradicionais e de família estão a desmoronar-se.

Há medo nas pessoas, pela repressão que é imposta por homens de rosto coberto. As pessoas sentem que são tratadas como malfeitoras. A pequena economia vai-se debilitando e desaparecendo.

Agora, apareceram uns deputados a criar um grupo de trabalho para fazer o levantamento dos produtos tradicionais. Não se sabe quando, até porque o grupo é afecto ao Governo, irão aparecer os resultados. Depois, haverá sempre uma justificação, de que os produtos tradicionais irão ser regulamentados.

As leis a que estão sujeitos estes produtos são quase todas baseadas em legislação comunitária. Falar de doce de figo, de galinha de cabidela ou do medronho a um estrangeiro é o mesmo de quando nos falam a nós de produtos genuinamente de outros países europeus.

Esperemos que haja seriedade e celeridade neste projecto, para que não morram, como diariamente vem acontecendo, as pequenas indústrias tradicionais.

Porque, mais importante do que inspeccionar as condições da fábrica, é avaliar o produto final, posto à disposição do grande público, e saber se tem ou não condições para ser consumido.

Se não reunir os pergaminhos de um produto tradicional, a definir pelos entendidos em cada produto e não por um senhor que de cátedra manda palpites, então o produto deve ser retirado do mercado e a entidade produtora devidamente avisada das correcções que deve efectuar. Educar e prevenir.

Somos defensores da tolerância, da educação e prevenção, como forma de repor a legalidade. Sem o recurso à repressão, sem atitudes persecutórias.

Uma polícia que não é capaz de prevenir e de educar é porque não tem estes ensinamentos na génese da sua formação, daí transformarem-se em agentes da repressão, sem o mínimo de princípios básicos de humanidade e de respeito pelos contribuintes.

Que fique claro: previna-se, eduque-se, recomende-se... quem não seguir as regras, depois destes três princípios aplicados, é porque quer estar fora da lei, logo, deve ser sujeito a uma penalização. Portugal e os portugueses precisam de aprender a respeitar-se mutuamente.

Como ponto de honra reclamamos – não deixem morrer as nossas tradições, só porque há uns políticos que não passam de pingarelhos, a querer ser mais papistas que o Papa, usando e abusando, como se isso fosse ser um bom europeu, dos «fundamentalismos» de uma Europa que não nos diz respeito.

NOTA: Os comentários de Hélder Nunes são emitidos todas as quintas-feiras, às 8,30 horas, com repetição às 13 e às 19 horas.