terça-feira, janeiro 23, 2007

EL HOMBRE !

por José Mateus (consultor de comunicação e autor do blogue CLARO)

A eleição do “maior” dos portugueses, do maior dos filhos de um Portugal praticamente milenar, serve muito mais para nos informar de como vai a “cultura dominante” neste momento, de como vão as cabeças das pessoas, do que para qualquer coisa. Ficamos a saber mais sobre os portugueses que respondem do que acerca da matéria sobre a qual respondem.

Dito isto, confesso que gostei de, pelo meio da poeirada que a coisa levantou, ler o meu velho amigo Ferreira Fernandes, na revista Sábado, que à sua maneira disse tudo:

“Há que dizer que maiores de Portugal há muitos, desde que sejam D. João II”

E explica: “Dos finalistas quatro estão relacionados (com os Descobrimentos): o infante, o do pontapé de saída, Vasco da Gama, o do maior feito, Camões, o que os cantou, e D. João II que os organizou.

Os Descobrimentos foram uma empresa pensada: ter os melhores pilotos, formando-os ou contratando estrangeiros, legislar para esconder o saber da concorrência, fazer e procurar as melhores cartas de marear, arranjar dinheiro, proteger os homens da ciência, saber o que se quer. A obra, a empresa, vista assim no seu conjunto, tem uma cara, a de D. João II”.

Escassas décadas depois da sua morte bizarra, a Inquisição instalava-se entre nós com as suas fogueiras, os seus cárceres, o seu índex e a sua censura. Começava a caça à inteligência…

Pouco depois, Camões falará de “uma apagada e vil tristeza”. Seguro do que escreve, Pedro Nunes escreverá já a medo. Fernão Oliveira escapa à fogueira por pressão inglesa e, entre os exílios e os cárceres inquisitoriais, ainda consegue tempo para escrever a primeira gramática do português, a primeira história de Portugal, uma obra sobre a construção naval, o primeiro tratado de estratégia marítima e outras obras que serão silenciadas, algumas até hoje…

Até hoje…?

Assaltado o poder real por gente que odiava D. João II, o projecto estratégico posto em marcha pelo estratega maior vai ser desviado dos seus objectivos (e Albuquerque morrerá de “mal com el-Rei por amor dos homens e de mal com os homens por amor d’el Rei”) e os fabulosos recursos que o projecto gera são desviados para fins diversos e mesmo contrários ou antagónicos dos previstos no plano e, portanto, de efeito negativo.

Os resultados do projecto estratégico de D. João acabam assim usados contra o próprio projecto, a visão que o suporta e os seus agentes económicos, políticos e militares.

Durante séculos, são os recursos gerados pelo projecto joanino que irão alimentar as fogueiras, a censura e o índex, consolidar as suas posições e enriquecer “santos ofícios”, seus “familiares” e outros “cães do senhor”, domini cannis. E assim Portugal entristeceu até chegar a um século XX dominado pelo triste complexo neo-corporativo e salazarento.

Houve, com melhor certeza reacções e revoluções. Intervalos e homens. Castelo-Melhor, Ericeira, Pombal, a longa guerra civil do século XIX, a República…

Castelo-Melhor, depois de ganhar a guerra com Espanha, acabou desterrado, Ericeira suicidou-se, Pombal ripostou a tudo mas acabou como Catelo-Melhor e ainda teve de assistir a “viradeira”, a guerra civil do século XIX acabou mal e a República espetou-se nas suas próprias baionetas.

Só no fim do século XX, se esgotam as fontes de recursos geradas pela estratégia de D. João II e que haviam sido desviadas dos fins que o grande estratega lhes dera, para acabarem utilizadas “contra a lei e contra a grei”.

Se ele não tivesse sido envenenado (Fernando Campos, no seu romance “A Esmeralda Partida” tem óptimas páginas sobre o assassinato do Rei) e não tivesse sido morto prematuramente (aos 40…), se o projecto estratégico não tivesse sido virado do avesso (pelos Braganças e seus aliados, com o apoio de Castela-Aragão) não seria apenas Portugal que tinha sido muito diferente, seria todo o globo a ser outro. Por isso, pelo que fez e pelo o que não lhe deram o tempo de fazer, ele é o estratega maior da história e, obviamente, o Maior dos Portugueses.

“Cuida-te, Rei” tinha-lhe dito a feiticeira à beira do caminho… “Murió El Hombre” foi como Isabel a Católica comunicou à sua corte a morte de D. João II.

“El Hombre”. D. João II, o Português sempre.

NOTA: Os comentários de José Mateus são emitidos todas as terças-feiras, às 11 horas, com repetição às 17 e às 23 horas.